quarta-feira, 16 de outubro de 2013

PRIMEIRA VIAGEM

A minha primeira viagem [Por Trindade Melim]
 
A noite, tinha sido calma, céu limpo e o vento não se fez sentir, ouvi os sapos e os grilos, a ansiedade tinha-se apoderado da minha alma, não tinha conseguido dormir. As horas passavam e no silencio da escuridão conseguia contar as vezes que o velho despertador fez tic tac, tinha alarme marcado do dia anterior para as oito horas da matina. Era preciso arrumar o resto da mala para a viajem até a ilha da madeira, o lanche para a viajem e mais uns casaquinhos não fosse fazer frio, íamos de viajem para a cidade. A minha mãe ia ao médico para trocar os óculos, lentes e aros, tinha eu oito anos de idade. Imaginei dias antes, como seria andar nas ruas movimentadas de gente e “Abelhas”. No Porto Santo os carros eram contados pelos dedos, o Sr. Professor e o homem de negócios tinham uma viatura, as outras que circulavam pelas estradas da ilha dourada, eram táxis de cor preta e verde que por costume chamávamos de “abelhas”. Como seriam as da cidade? Iguais…? Diferentes…?. Pensei que iria comer bolos e beber laranjada, deliciava-me só de imaginar a dar dentadinhas pequenas para fazer render o gosto, num bolo de arroz, não me faltaram súbitas ideias para matar o gosto da novidade que iria viver. Onze horas, eu e minha mãe chegamos ao cais da Vila Baleira e fomos ao encontro do meu Pai na altura tripulante de um cargueiro chamado Arriaga, comandado pelo então Arrais Paulino, homem calejado no mar, alto e robusto pendia uma das pálpebras de um dos olhos, que me fazia lembrar os tempos antigos dos piratas, tinha sofrido em tempos idos alguma maleita que lhe deixava o olho entre aberto quando olhava para nós. Meu pai, aproximou-se e disse-nos “…vamos para bordo, que hoje sairemos mais cedo, as uvas, a cal e a água já estão a bordo…” assim o fizemos. A bordo o meu pai esmerava-se em nos explicar como haveríamos de passar a viagem na câmara do barco (compartimento localizado no convés da embarcação de formato rectangular paralelo as bordas do barco e com uma altura útil que não permitia as pessoas adultas andar de pé) era ali que iriamos passar as quatro horas de viagem até a ilha da madeira se por acaso fizesse mau tempo no mar, coisa que acabou por não acontecer. O barco zarpou perto as treze horas com bom tempo, durante a viagem meu Pai trouxe uns alguidares pequenos de plástico com cores diferentes, amarelos verdes azuis e vermelhos, a cor não tinha qualquer significado mas o fim a que se destinavam sim…era naqueles pequenos alguidares que as pessoas quando passavam mal a viagem iriam vomitar, depois um dos tripulantes, recolhia-os e despejava no mar, de seguida lançava ao mar um balde que recolhia água salgada e lavava-os para novamente voltarem para junto dos passageiros. Mesmo com o mar bom, a minha mãe fraca de estômago para estas andanças, sentiu-se mal disposta e lá teve que usar o seu alguidar. Eu, fiz a viagem a explorar o barco, ora na câmara ora perto do posto de comando que era na altura um leme comandado manualmente para bombordo e estibordo com um ferro em geito de foice que lhe davam o nome de “cana de leme”. Quis experimentar a levar o barco quando meu pai comandava, ele fez-me a vontade e para me ensinar como deve ser colocou a mão dele em cima da minha para que eu pudesse decorar os movimentos certos a dar conforme o mar ia alterando a rota. Adorei tanto que nas viagens seguintes era ali o meu posto, agarrado a cana de leme sempre que me deixavam. Chegados á Cidade, o cheiro que pairava no ar da da Pontinha era algo fora do que eu estava habituado, cheirava a peixe e óleo, quase próximo ao que tinha cheirado durante a viagem perto dos passageiros que vomitavam por má disposição durante a viagem. Desembarcamos, fomos para “dentro” como era comum dizer-se na gíria das gentes do mar. Meu pai levou-nos a comer uma sandes de carne vinho e alhos a uma tasquinha perto do Cais Regional, a fome provocada pela maresia durante a viagem era tanta que em “ menos de um fósforo “ comi-a sem quase sentir os nacos de carne, passarem pela “ goela “…bebi uma laranjada que fez-me vir ao nariz o gás e de seguida provocou o tão esperado arroto… morta a fome, era altura de irmos para uma pensão porque só no dia seguinte é que a minha mãe tinha a dita consulta. Na pensão e já no quarto, deitei-me e dormi a noite toda, porque a minha alma estava descansada por ter chegado ao destino e que no dia seguinte haveria coisas novas para ver. Esta viagem foi a primeira de muitas neste tipo de embarcação, onde algumas delas, foram mais bem vividas, devido ao facto de estar a lidar com algo com mais experiencia e mais idade.
 
 
2º PARTE- A MINHA 1º VIAGEM UM DIA NA CIDADE Acordei era manha, o barulho dos carros e das pessoas juntas não me deixara dormir mais. A Pensão Familiar, localizada na rua da Alfândega, muito próximo onde é hoje as portas da cidade foi o sitio onde passáramos a noite sossegada. A azafama para muitos na rua tinha iniciado muito cedo, da janela que pairava para a rua principal, via gentes nunca antes vistas por mim e imaginava como seria o mundo se só houvesse uma terra e um mar, em que todos estariam juntos e pertinho uns dos outros como via ali bem por baixo dos meus olhos azuis, seriamos como aquela multidão que via na rua…?ainda hoje, quando vejo uma rua apinhada de gente gosto de pensar nesse meu pensamento de infância. Senti a porta bater, e desde logo apercebi-me que pelos passos era meu Pai que ao entrar, disse com voz carregada de tom de comando…” tá levantar… é já dia alto e temos que nos despachar para a consulta...vamos passar na padaria, comer alguma coisa e marchar…” ouvindo estas palavras não me fiz tardar e disse estar pronto para irmos. Descemos as escadas em direcção á padaria que ficava no rés-do-chão do edifício da Pensão, para comprar pão branco, fofo e grande, era demais para mim…, aquele pão, só o comia em dias lembrados durante o ano, como na Páscoa ou Natal e comer assim num dia fora daquelas épocas era algo de especial e de carinhoso que o meu pai estava a tentar dar a minha mãe e mim. Era comum comermos o pão preto e mais barato além de ser mais pequeno, de não ter o cheirinho e de ser menos fofo que o branco, adorava os de forma, macios e fáceis de fazer fatias, era comido mesmo sem nada barrado dentro, seco… que delicia que era…quando tínhamos algo para barrar seria banha de porco, pouco temperada e feita em casa, a manteiga era algo caro e comprada avulso em alturas lembradas. Ali, naquele dia, estava a ver-me comer pão branco com manteiga e um galão a acompanhar…que regalo… impossível de ter na maioria dos dias do ano. Saciados, seguimos caminho, meu pai ia pelas ruas a caminho do consultório, explicando o que eram alguns dos prédios como de trabalho se trata-se, afincadamente, repetia para mim depois de explicar para minha mãe na ideia de um dia eu vir novamente á cidade e saber orientar-me pelos prédios robustos e bonitos, a Alfandega, a capitania, casas de bordados, a majestosa Sé, o Apolo e café Funchal. Adorei os largos, com repuxos e lagoas com água, pombos que antes nunca tinha visto além do meu pombal ou dos pombais dos vizinhos, ali estavam eles, nos largos às dezenas que naquela manha alguém lhes deitava milho, uma imagem única que ainda hoje muito gosto de presenciar. Chegados á porta do consultório na Rua das Pretas, Vi uma porta que subia e descia com luz…!deixou-me de olhos arremelgados e grandes, assustado e ao mesmo tempo curioso…!perguntei-me, “ que é aquilo, uma porta ou janela que sobe e com luz…?”, meu pai atento perguntou “ então rapaz, que andas a aprender na escola…? …aquilo é um elevador…vamos esperar que ele desça, vamos entrar e subir até a sala do Sr. Doutor…” bem…, explicado parecia estar…, agora era só esperar e experimentar algo que desconhecia. A minha mãe, não se fez esperar nem foi na conversa do meu pai que se dobrava em explicações relacionadas com a segurança do “jingarelho”... Disse…” eu cá não ponho o pé naquilo…” enquanto ele subia e depois descia a minha mãe acabou por se convencer e mesmo trémula entrou e saiu no andar pretendido assim como nós. O tempo de espera para minha mãe ser atendida, foi razoável e o suficiente para eu lançar-me á descoberta do elevador, sem meus pais notarem a minha falta na sala sai. Carreguei ao botão de chamada e lá estava ele ali passado alguns segundos, não entrei logo, deixei subir, depois voltei a carregar o botão e lá vinha ele, desta vez vinham pessoas a descer e disseram me para embarcar, foi e vim varias vezes durante uma meia hora, desci e subi até perceber que aquele jingarelho era bom para o “raio” da brincadeira, dava-me a sensação de leveza, sentia- me como se nas nuvens estivesse. Acabada a consulta, foi eu quem já chamou o elevador e o ultimo a entrar, tinha copiado os comportamentos das outras pessoas, meus pais olharam para mim com aquela cara de quem quer dizer sem falar “…o meu menino é esperto…” então, o meu pai achou por bem gratificar-me pelo meu comportamento exemplar, mal sabendo ele que numa distracção deles, tinha escapado e feito das minhas dentro e fora do elevador… “ali á frente, há um carrinho com bolos…” disse com uma voz segura meu pai. Comi um bolo de arroz e outro veio para comer mais tarde, ainda hoje é o meu bolo de eleição, a carapuça polvilhada de açúcar e é a primeira parte do bolo a ser devorada…naquele dia, a vontade era tão grande de comer aquele bolo novo para mim, que até esqueci que ele tinha uma cinta de papel e quando dei por ela, metade desta já tinha sido comida, foi uma risada geral, quando meus pais olharam para mim e viram que comera sem olhar ao papel que envolvia o bolo. Era tarde, tínhamos que voltar ao barco, ainda havia tempo para fazer umas compras, café, amendoim e um pouco de bacalhau na Pretinha do café na Rua Fernão de Ornelas e ainda umas bolachas da casa Santo António. Já tínhamos pão fresco, estava mais que na hora de voltar ao barco e seguir viagem para Porto Santo
 
 
3ª PARTE E FIM DA VIAGEM REGRESSO A PORTO SANTO Mal tínhamos embarcado, já o relógio da torre da igreja dava horas certas, acompanhadas de badaladas de sino anunciando duas horas da tarde, fazíamos contas da hora que chegaríamos ao Porto Santo e eu já salivava a pensar no que seria o jantar a bordo. Os barqueiros, faziam caldeiradas de peixe salpresado ou simplesmente peixe cozido na água e no sal, acompanhado com semilhas também elas cozidas com ou sem casca, qualquer dos modos era bem-vindo em tais circunstâncias de viagem. De olhar preso em terra e á proa do barco, ia vendo o casario madeirense implantado nas montanhas mais parecendo uma lapinha. Bonito de se ver, para quem estava a costumado a ver terras mais planas e de cor dourada, imaginava um dia ver tão cor verdejante na ilha de Porto Santo, mas o primeiro pensamento que assaltava a mente, era sempre o mesmo…”no Porto Santo não há água…” a tristeza invadia o coração mas a esperança ditava melhores dias para a minha terra. Navegando nas águas calmas, entre o Cais Regional e o Garajau, o Arriaga, parecia adormecido, ouvia-se o ruído do motor como se tivesse a ressonar num sono profundo. Entre passageiros, ouviam-se conversas de como tinha decorrido a ida á cidade e alguns militares que regressavam a casa, comentavam as suas aventuras dentro e fora dos aquartelamentos. Algumas pessoas escolhiam os melhores lugares para ficarem sentados, outras aproveitavam como eu, para ver a costa sul da ilha da madeira, os tripulantes da embarcação preparavam o jantar, enquanto o arrais e maquinista, preocupavam-se com o rumo e o bom funcionamento do motor. O sol, estava a decair para poente, mas mesmo assim, aquecia o nosso pescoço, deixando a sua marca escaldante na minha pele jovem e branca. Meu pai, fez um sinal com a cabeça, chamando-me a atenção para ir ter com a minha mãe, porque já estava na hora de comermos antes que o barco passa-se a Ponta de São Lourenço. O mar, estava calmo mas avizinhava-se vento e ondulação de Nordeste o que era indício de que a embarcação iria balançar, nessa altura o mais certo era a minha mãe não comer nada porque enjoaria. Os pratos, eram de chapa inox, luzindo com a incidência solar, achei piada e tentei fazer reflexo para o Sr. José Dias, homem amigo e simpático, tripulante forte de cor encarniçada, que no momento vinha escarrapachado sobre a carga, o sol estava a aquecer-lhe tanto que ele abria e fechava os olhos com sonolência fatídica, consequência do esforço feito antes, ao carregar o barco junto com os outros parceiros de tripulação, sorria para mim e dizia baixinho “…és um malandro…gostas de fazer partidas como o teu pai…”. A tão esperada refeição foi como imaginava, peixe atum salpresado cozido em água do mar, acompanhado com rodelas grossas de cebolas, semilhas, alho e salsa picada, azeite para “derregar”, um manjar dos Deuses, estava a ser servido á tripulação e a nós, enquanto os passageiros comiam aquilo que tinham trazido como merenda. Entravamos na travessa, mar mais agitado entre a madeira e Porto Panto, o silêncio entre os passageiros instalou-se…, quase ninguém falava, concentrados em se controlar, aqueles que passavam mal no mar, os outros formavam agora grupinhos de duas pessoas e em cima das cargas iam falando e rindo. O barco ia carregado de mercadorias e uma viatura, um pouco de tudo, desde o petróleo e bebidas, como a cerveja e a laranjada ás mercadorias de mercearia, farinha, arroz, milho e outros. O gás de uso domestico, a lenha para queimar nas padarias. Olhava, da proa para a popa do barco, o conjunto de mercadorias, parecia um tapete de retalhos, em que as cores e formas bem arrumadas, pareciam estar numa prateleira de mercearia ou hoje de um supermercado. O dia agitado que tive, fazia-me sentir ensonado, tentei um cantinho encostado a minha mãe dentro da câmara de passageiros, estava cansado, queria dormir e nem os balanços ritmados da embarcação se eram suficientes para adormecerem-me, ainda hoje sou assim, no mar dificilmente consigo dormir. De olho entreaberto e cara de sono, passei a travessa acordado pensando voltar em outra viagem, quando fosse para a minha mãe regressar a outra consulta ou vir buscar os óculos ao oculista “Melim”. Nesta madorna, vejo pelo canto da câmara de passageiros uma sombra escura e imponente, diziam alguns “…o ilhéu da Cal… agora é num instante…” apercebi-me que aquele ilhéu era a marca que separa o Mar dos Cabritos e o bom estado do mar, calmo, da baia de Porto Santo. Nos dias de hoje, quando estou a viajar e imagino ir para além da meia travessa, guio-me numa razão de distância/tempo, pelo perfil distante ou não do Ilhéu da Cal. Passado o Ilhéu, lá estava o cais da Vila Baleira de construção sobre colunas de betão cilíndricas, imponente á fúria do mar em dias de inverno e tempo agitado do Sul ao longo dos anos, ali o Arriaga atracou e finalmente pé em terra. Desejando chegar a casa para contar aos meus amigos a ida á cidade e todas as experiencias e peripécias que tinha vivido. Iniciou a azáfama de atracar, cabos para a proa e popa lançados para terra, os homens puxavam pelos cabos e o barco lentamente ao sabor da ondulação foi encostando devagar as escadas de acesso ao cais. Fardado, estava o Cabo do Mar, Sr. Guidinho, fiscalizando tudo, nomeadamente a segurança na saída de passageiros, assim como a quantidade de pessoas que desembarcava. Era hora da companha descarregar o barco e transportar as cargas para o largo do cais, hoje largo do Barqueiro. Depositada a carga, os donos iam aparecendo uns a seguir aos outros, fazendo contas com o “escrevente” do Arriaga, profissão equiparada a um apontador, mistura com contabilista nos dias que correm. Caminhava pela mão da minha mãe no cais, quando notei que por nós passava um carrinho de carga carregado de fruta regional, esgueirei-me e tirei de um cesto de vimes uma maçã vermelha e cheirosa, não resisti a tão convidativa imagem de beleza regional. Como a dentei de seguida, não deu tempo a minha mãe dizer algo, deu-me um “carrelaço” para aprender a não mexer naquilo que não nos pertencia. Ficava para trás, uma primeira viagem que seria o motivo de muitas outras por ter tomado o gosto de navegar e sentir a maresia, ver a terra de outra perspectiva que não quando é pisada pelos nossos pés, mas sim, vista com os pés quase dentro de água a olhar para terra.
 
OBSERVAÇÃO: Optámos por apresentar o texto tal qual como o recebemos: sem arranjos gráficos, sem correções ortográficas, sem supressões... mantendo os ritmos da memória do seu autor. O PROXIMO RELATO SERÁ O SEU.

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