sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

«Poor kids»

A casa é um lugar de memórias. Cada objeto conta a história de um cá ou de um lá, onde a angústia se cruza com o amor, onde o tempo se mistura nos retratos da parede, na loiça do aparador, na voz da senhora que nos recebeu em sua casa, como quem recebe duas amigas.
Não, não vou dizer o nome. Tambem não falo daquilo que hoje faz para que muitas vidas tristes sejam um bocadinho menos tristes. Mas vou contar a história que nos contou: nasceu num tempo em que o campo era muito mais longe do que agora, em que estudar era coisa de rapazes, em que o amor nem sempre era coisa do coração... Gostava de um rapaz pobre. Tinha um pretendente rico. Mas ela não podia casar com o dinheiro que esse venezuelano acenara à mãe. Ela que não. A mãe que sim. Ela que não. Tinha vinte anos quando saiu de casa. Nesta história, há um tio padre que a acolhe, que a protege, que a casa. [O seu retrato ainda domina aquela sala].
Conta-nos que, um ano depois do casamento, o marido tem de emigrar. Em casa dos sogros, redescobre o sonho que tinha adormecido no seu peito: estudar. Em dois anos, faz o 5º ano e prepara-se para o futuro que há-de vir. Grávida, embarca com o marido para os Estados Unidos. Têm lá familia. E vai feliz. Estão juntos.
O pai morrera de tuberculose e deixa-lhe, como herança, uma mancha no pulmão. Os oficiais de saúde não a querem deixar sair do barco. Têm medo da doença que vem do outro lado do Atlântico. Os cunhados, porém, que já ali viviam há muito tempo e conheciam todos os procedimentos, assinaram um termo de responsabilidade e a família foi acompanhada pelo sisitema de saúde americano. Visitavam-na em casa. Faziam-lhe exames médicos, seguiram o crescimento dos filhos. Quando decidiram regressar à Madeira, as palavras foram
- Poor kids....
  A Madeira ficava do outro lado do mar.
Veio então fazer a vida aqui. Ingressou na Escola do Magistério Primário (- que era ali atrás do Liceu), no limite de idade. Fez-se professora primária. Trabalhou.~
- Tinha 35 anos, a idade limite em que um funcionário podia, nessa altura, entrar na função pública. Estudou. Fez um Curso Superior. E hoje, hoje é quem é: uma mulher de força, uma voluntária ao serviço de outros.
Se voltou a ver a mãe? Voltou. Estava doente. Muito doente. Recebeu-a bem, sim. Não esqueceu. Mas perdoou.
- Ela só não queria que eu passasse as dificuldades que ela tinha passado. Fomos cruzando memórias. Vendo fotografias. Falando de outras coisas. De futuros tambem.
  - Sim, tenho muitas cartas, tenho coisas escritas. O meu neto anda atrás de mim para lhe mostrar as minhas coisas. Não sei. Talvez quando eu morrer.
Não insistimos. Todos têm o direito de proteger as suas memórias. Claro que sim.

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